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SAÚDE – Pandemia x endemia: governo avalia novo status para Covid, mas o pior já passou? Março será o começo do fim?

Especialistas dizem que é 'precipitado' falar em endemia com 800 mortes por dia ou cravar datas para o fim da pandemia. Necessidade de ampliar a vacinação de crianças e da aplicação das doses de reforço é consenso em meio a muitas incertezas.

Há quase 2 anos, em 11 de março de 2020, o planeta passou a viver sob status de pandemia. No Brasil, o pico de mortes foi em 6 de abril de 2021, com 4.211 mortes registradas em apenas um dia.

Agora com média móvel acima de 800 óbitos diário, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, diz que a vacinação contribui para acabar com o “caráter pandêmico da Covid-19” e sinaliza que o governo avalia os dados epidemiológicos para rebaixar a classificação da doença para a de uma “endemia”.

Endemia é o status de doenças recorrentes, típicas, que se manifestam com frequência em uma determinada região, mas para a qual a população e os serviços de saúde já estão preparados.

Especialistas entrevistados pelo g1 avaliam que a mudança de pandemia para endemia é uma decisão complexa e que qualquer mudança diante do atual cenário seria “arriscada”, “precipitada” e de um “otimismo preguiçoso”.

E citam alguns motivos:

A variante ômicron ainda está em circulação, tem uma alta taxa de transmissibilidade e não existe a certeza de que novas variantes possam surgir e voltar a fazer mais estrago;
Ainda se sabe pouco sobre a nova sublinhagem da ômicron, a BA.2, o que gera incerteza sobre um novo pico nos próximos meses;

Além disso, o enfrentamento da ômicron exige uma alta taxa de vacinação e, mais do que isso, doses de reforço. Apenas o estado de São Paulo tem mais de 50% da população com 3 doses;

Em comparação com outras endemias já caracterizadas no país, como a dengue, o número de mortes e casos ainda é muito superior, o que não estaria de acordo com o status endêmico;

Previsões anteriores – das mais otimistas às mais pessimistas – falharam com a Covid-19. Cravar que estamos prontos para virar a página pode ser mais uma expectativa frustrada, avaliam os especialistas.

Caminho do fim da pandemia

O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, disse em entrevista ao O Globo e ao MS1, da TV Morena, que março deve ser o mês que marcará a “passagem” da onda da ômicron. Apesar disso, sem dar data, afirmou que a vacinação e as infecções prévias devem contribuir para uma fase de transição na pandemia.

“A gente vai sim caminhar para o fim da pandemia e isso vai ser mais tranquilo se a gente tiver maior cobertura vacinal. (…) Quando a letalidade reduzir, nós teremos um momento mais tranquilo e essa transição”, disse Croda.

Porém, o especialista alerta que a Covid ainda tem uma taxa de morte entre 2 e 3 vezes maior que a da influenza e que as taxas de vacinação ainda precisam melhorar.

E o que dizem os demais números?

O primeiro a ser avaliado é o da taxa de transmissão da Covid-19. O Imperial College de Londres informou nesta terça-feira (23) que o ritmo de contágio do Brasil está abaixo de 1 novamente: 0,97. Na prática, o índice significa que cada 100 pessoas infectadas transmitem o vírus para outras 97 – um sinal de um decrescimento da circulação.

No entanto, há pouco menos de 1 mês, em 25 de janeiro, a mesma taxa estava em 1,78 – cada 100 pessoas infectadas transmitem o vírus para outras 178 – claramente a disseminação estava em alta no país.

“Lá em 2 de janeiro deste ano, nós estávamos com 34 mortes por dia aqui no Brasil. Em 15 de fevereiro, tivemos até um pequeno decréscimo, mas ainda temos mais de 800 óbitos diários. Como isso é uma endemia? A endemia se caracteriza quando o número de casos e de óbitos fica muito baixo por um período de mais de 2 meses, pelo menos”, argumenta Domingos Alves, cientistas de dados e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).

Com relação ao número de casos do coronavírus, a média móvel reduziu para abaixo de 100 mil por dia apenas nesta terça-feira. Em 2022, a média chegou a ultrapassar a marca de 180 mil, maior taxa da história da Covid-19 no país.

“Entramos num período de declínio dos casos, mas que significa que provavelmente estamos entrando em um período de calmaria, ou seja, o coronavírus foi contido neste período, mas é arriscado dizer que a pandemia chegou ao fim”, disse Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Universidade Federal do Ceará.

As novas variantes surgem

Além disso, nada garante que uma nova variante não chegará ao país. As que já existem, como a BA.2, uma sublinhagem da ômicron, ainda estão à espreita e com estudos em andamento ou pouco conclusivos sobre sua transmissibilidade.

Segundo Camila Romano, pesquisadora do Laboratório de Investigação Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, ainda estamos em fase de “experimentar” o surgimento das versões do vírus.

“Há um estudo em Israel em que eles sugerem que a BA.2 escapa mais da imunidade prévia do que as outras variantes. Eles acham isso porque existem indivíduos que foram infectados pela BA.1 [primeira versão da ômicron] e pouco tempo depois também foram infectados ela BA.2”, disse a especialista Camila Romano.

Um dos destaques do estudo é que o intervalo de tempo em casos de reinfecção de pacientes com as duas sublinhagens da ômicron foi inferior ao relatado entre outras versões do vírus.

“Isso não acontece depois de uma infecção com a delta e o contato em seguida com a primeira versão da ômicron. A pessoa fica uns três ou quatro meses de imunidade depois da infecção.

Mas existem mais controvérsias em relação à BA.2. Outros estudos da OMS dizem que o problema, na verdade, são as regiões com baixa imunização, e foi por isso que ela chegou fazendo seu lugar. Ainda não dá pra tirar uma conclusão, não é um consenso. Cada país está se comportando diferente”, explica Romano.

“A minha mensagem seria tomar um pouco de cuidado com um pouco de otimismo preguiçoso: ‘não tem o que fazer mesmo, e vida que segue’. Não é porque é endêmica que ela não vai mais matar, que não vai surgir uma variante nova. Simplesmente rotular a Covid como endêmica pode passar a impressão de que a situação está controlada”, complementa Romano.

Escape da vacina

Em outro ponto da análise dos especialistas está o fato de estamos em uma nova fase da vacinação no Brasil: mais de 70% receberam as duas doses, uma conquista convertida em uma proporção de óbitos menor do que a vista em 2021.

No entanto, a ômicron tem um escape maior em relação às vacinas disponíveis, principalmente após alguns meses de aplicação da segunda dose. A taxa de vacinação de reforço está muito aquém do necessário para barrar o avanço de novos casos.

Dados do consórcio de veículos de imprensa com base nos dados das Secretarias Estaduais de Saúde apontam que apenas São Paulo está com mais de 50% dos adultos com três doses. Os estados de Roraima, Amapá, Pará e Acre têm uma taxa inferior a 20%.

“Ainda tem estado com menos da metade da população com duas doses e já querem discutir o que vão fazer quando a pandemia acabar”, disse o divulgador científico, biólogo e doutor em microbiologia Átila Iamarino.

Não se compara a outras endemias

Os especialistas ainda apontam que o impacto da Covid-19 é muito mais alta do que outras endemias no país.

A comparação com a dengue é inconsistente porque são doenças diferentes. Mas, ao ignorar as inconsistências, os números são ainda mais expressivos: a dengue matou 230 pessoas entre 1º de janeiro e 4 de dezembro de 2021. Mesmo em 2019, quando o Brasil registrou 1.544.987 casos de dengue, com um aumento de 488% em relação a 2018, 782 pessoas morreram pela arbovirose.

“Acho que nosso objetivo não tem que ser “alcançar” a dengue ou a febre amarela. Nosso objetivo tem que ser impedir novas pandemias, como esta e outras recentes”, disse Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

“Temos que parar com a destruição do nosso planeta. Ele está atingindo um nível a partir do qual será difícil o retorno. Desde 1940, a OMS alerta sobre a possibilidade de ocorrência de pandemias como estas. Vejam a lista de outras doenças “endêmicas” que ocorreram de forma epidêmica ou pandêmica e que também têm como causa a destruição das matas: HIV, Mers, Sars, dengue, chikungunya, zika, e agora a Covid-19”, completou.

É bom aprender com o passado

Alves, Romano e Kerr afirmaram que a Covid-19 ainda é imprevisível. Outras previsões foram feitas anteriormente e não se confirmaram. Mudar o status para endemia poderia causar uma impressão de estabilidade e, segundo eles, ainda é cedo para isso.

“Quando a delta entrou no Brasil, muitos avaliaram que seria um verdadeiro desastre. Não foi. Provavelmente, o que segurou o ‘desastre da Delta’ foi nossa grande exposição anterior e recente a uma variante similar, em muitas mutações, à própria delta e uma taxa de imunização em crescimento. Nós nos saímos muito melhores que os EUA e outros países ricos da Europa neste processo”, explicou Kerr.

A vice-presidente da Abrasco aponta que, com a disseminação “explosiva” da ômicron e as taxas mais elevadas de imunização alcançadas, a população deve estar com um quadro de imunidade alta. “Isto deve segurar novas infecções em futuro próximo. Se não aparecer nenhuma variante neste período, pode ser que tenhamos períodos de calmaria”, avalia.

A especialistas explica que, apesar da alta probabilidade de “endemização”, isso não é necessariamente uma coisa positiva.

“Significa que viveremos anos com a Covid-19, com algumas epidemias mais localizadas. Os grupos mais vulneráveis, idosos, pessoas com comorbidade, ficarão precisando se proteger com vacinas e máscaras até uma avaliação contínua da situação epidemiológica”.

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