MUNDO: China tem recorde de casos de Covid, e propaganda pinta vírus como menos letal
A orientação é que agora fechamentos sejam localizados, em blocos residenciais ou distritos, em vez de grandes metrópoles inteiras.
Ciente de que não deve conseguir conter os efeitos econômicos da política de Covid zero, que dá sinais cada vez mais consolidados de esgotamento, a China começa a explorar novas saídas para a flexibilização das restrições.
Se antes do congresso do Partido Comunista que deu ao líder Xi Jinping um inédito terceiro mandato a narrativa buscava mostrar que o país tinha vencido a doença, agora a máquina de propaganda foi instruída, por exemplo, a explicar que a ômicron e suas novas subvariantes são bem menos letais do que a cepa original detectada em Wuhan no final de 2019.
A estratégia é discutida em um momento em que a China assiste a uma nova onda forte de casos, com o recorde de 31.656 infecções registradas nesta quarta-feira (23), superando as 29.317 de 13 de abril. Em cidades como a capital, Pequim, há picos sucessivos de diagnósticos, e desde o fim de semana vêm sendo divulgadas as primeiras mortes pela doença em seis meses, ainda que pontuais –nesta quarta, houve uma, levando o total a 5.232 desde o começo da pandemia.
Nesse cenário visto como crítico, em que até hospitais de campanha voltaram a ser erguidos, discussões sobre uma flexibilização geral imediata soam fora de lugar, sob o risco de pressionar o sistema de saúde –estudos sugerem que a abertura completa poderia resultar na demanda de 5,8 milhões de leitos de UTI.
Mas, buscando financiar testes em massa e discutindo novos modelos de quarentena e lockdown, o país luta para minimizar o impacto econômico das medidas sanitárias, num ano em que o crescimento do PIB deve ficar abaixo da meta de 5,5%, já a mais baixa em décadas.
A reportagem conversou com fontes oficiais ligadas à gestão da pandemia, que pediram para permanecer anônimas por implicações profissionais e políticas. Elas apontam certa ansiedade para os próximos meses, com o regime esperando um inverno difícil. Há temores de uma explosão de casos no Ano-Novo Chinês, em 22 de janeiro –a data é considerada o maior fenômeno migratório do mundo, com milhões de pessoas se deslocando a suas cidades de origem para as festividades.
Mas elas relatam que o novo discurso já pode ser visto na cobertura da Copa do Mundo (da qual a China não participa). TVs estatais têm dado especial destaque às aglomerações de torcedores sem máscara no Qatar, reforçando que o mundo passa por um período de “pós-Covid”.
A indicação de Li Shulei para ministro da propaganda, portanto, não é por acaso: ele é conhecido por ter sido bastante ativo no Weibo (espécie de Twitter local), onde vez ou outra criticava abertamente políticas públicas. Li foi orientado agora a reduzir o controle de informação e autorizar que internautas questionem, até certo grau, políticas locais de gestão da pandemia.
O futuro primeiro-ministro, Li Qiang, também será peça fundamental. A escolha do ex-secretário-geral do partido em Xangai causou surpresa para analistas, dada a forma desastrosa com que a cidade lidou com um surto entre março e abril. Um interlocutor, porém, diz que uma punição que chegou a ser especulada não aconteceu porque Li recebeu ordens do regime para tentar flexibilizações.
O Centro de Controle de Doenças em Xangai, em especial, teria sido instado a apenas iniciar um lockdown completo em casos extremos –com várias mortes ao dia e recursos hospitalares se esgotando. A estratégia deu errado, mas, como a orientação tinha partido de cima, ele foi poupado. Agora, sua tarefa será coordenar a retomada econômica, usando os erros de Xangai como exemplo do que não fazer.
A orientação é que agora fechamentos sejam localizados, em blocos residenciais ou distritos, em vez de grandes metrópoles inteiras. Testes em massa, feitos religiosamente nas principais cidades entre abril e agosto, foram reduzidos em vários pontos do país, e o período de quarentena para quem chega do exterior passou de duas semanas para oito dias (cinco em um hotel fechado e três em casa).
Segundo as autoridades consultadas pela reportagem, líderes locais haviam sido instruídos a controlar a doença a qualquer custo antes do congresso do PC, em outubro. Com isso, vários governos provinciais e municipais tiveram que tomar empréstimos para subsidiar testes PCR, centros de isolamento e salários. Agora, o cenário é outro e a estratégia se tornou financeiramente insustentável. Mesmo em Pequim o orçamento de saúde estaria esgotado, com exames sendo financiados por um fundo de emergência.
A bala de prata na contenção de casos com que o regime conta são as vacinas inaláveis da biofarmacêutica CanSino. De acordo com interlocutores, a nova geração de imunizantes é bem mais eficaz do que as vacinas tradicionais usadas hoje e foram testadas com sucesso em surtos recentes no Tibete e na região de Xinjiang.
Um desafio a transpor, contudo, é a fabricação considerada complicada e lenta, já que o novo imunizante não é compatível com as linhas de produção já instaladas. A disponibilidade também é ainda limitada –só para quem não tomou a terceira dose de reforço em Pequim e Xangai.
Embora discussões sobre uma possível reabertura do país estejam na mesa de autoridades do regime, quem mora na China não se mostra tão confiante nisso. Pesquisadora da Universidade Fudan, em Xangai, a professora Karin Vazquez diz que escuta esses rumores há três anos –e já não acredita em mudanças a curto prazo.
No início de novembro ela participou da CIIE, uma das principais feiras chinesas de importação, tradicionalmente frequentada por grandes empresários e funcionários do regime. Lá, ouviu mais sobre planos para sustentar o impacto econômico da Covid zero do que para acabar com a política.
“O governo tem falado de ‘abertura econômica de alto nível’, priorizando crescimento sustentável com investimentos em alta tecnologia e consumo doméstico em substituição ao modelo orientado para exportações que prevaleceu nos últimos anos”, relata Vazquez, dizendo perceber um consenso em torno de crescimento menor a curto e médio prazos.
Ela destaca que o evento deste ano foi bem diferente do que o do ano passado. Se em 2021 o regime se mostrava confiante na resiliência da economia diante da pressão estrangeira para a saída de empresas do país, agora 29% das empresas entrevistadas reportaram queda na expectativa dos lucros e de 10% a 15% das multinacionais deixaram a China com destino ao Sudeste Asiático ou a seus países de origem.
“Muitas tiveram dificuldades na renovação dos vistos para funcionários expatriados, além de uma pressão maior para contratar mão de obra local”, afirma. “A gente viu também uma série de empresas que conseguiram renovar licenças para permanecer funcionando. Vários empreendimentos locais faliram, incapazes de lidar com as dificuldades econômicas e com quase nenhum incentivo governamental.”
Nesse cenário, setores como serviços e manufatura foram os mais prejudicados.
A gestão da pandemia também preocupa em nível pessoal. A gerente de projetos Eduarda Tamires Santos se formou em uma universidade chinesa em junho e decidiu se mudar para Guangzhou, no sul, que hoje vive um dos maiores surtos de Covid do país. Ela ficou três dias trancada no prédio onde vive após a descoberta de um caso positivo na vizinhança e agora lida com o fechamento de todo o distrito de Haizhu.
Com dificuldades para renovar o visto de residência e impedida de trabalhar presencialmente, Santos conta que a convivência entre os estrangeiros e os chineses no prédio se tornou mais complicada nas últimas semanas. Embora os locais, segundo ela, relutem a participar dos testes obrigatórios, são os estrangeiros os mais cobrados por “mais responsabilidade” em relação à Covid. Com isso, ela planeja deixar a China já no próximo ano.
“Lidar com essas restrições por um tempo tão longo pesa bastante. É muito difícil viver com restrição de mobilidade, é extremamente estressante ficar se preocupando o tempo todo se você pegou ou teve contato com alguém contaminado com o vírus –ou o que pode acontecer com você caso vá parar em uma quarentena centralizada.”